domingo, 30 de agosto de 2009
Stufana
Em 08 de setembro de 2009, os moradores de Stufana sairão da cidade para apresentar ao mundo os resultados de sua busca. A princípio aquelas pessoas não parecerão tão diferentes de nós. Mas logo ficará evidente que elas sofrem menos ao olhar para suas próprias falhas ou para as dores do mundo. Ainda que não sejam perfeitos, todos os habitantes daquele microcosmo terão impressionante capacidade de olhar, ver e agir integrados à situação. E, sim, saberemos que eles atingiram o objetivo do projeto.
Observação: Estas informações fazem parte de um trabalho de ficção desenvolvido pelos Grupos de Estudos de Artes Cênicas do Projeto TelaTeatro.
terça-feira, 11 de agosto de 2009
O sonho, de Strindberg
A cena escurece por instantes. As personagens em cena saem ou mudam de lugar. Ao voltar a luz, vê-se ao fundo, na sombra, a Praia da Morte. A meio caminho, a baía em plena luz e, no primeiro plano, a Praia Bela. À direita, um pormenor do Casino, de janelas abertas. No interior, vêem-se pares que dançam. Sentadas num caixote vazio, três criadas; de mãos pela cintura umas das outras, olham para os dançarinos. Na grande escadaria do Cassino, Edite, “a feia”, de cabelos emaranhados, sentada diante de um piano. À esquerda, uma casa de madeira pintada de amarelo. Duas crianças, em trajes de verão, jogam bola. No segundo plano, um embarcadouro com veleiros brancos. Na baía, um navio de guerra, um brigue branco de escotilhas negras. Paisagem de inverno; neve e árvores vestidas de folhas. Inês e o oficial entram. O sonho, cena X, (STRINDBERG, p.19)
As intenções de Strindberg são explicitadas desde o prefácio da obra, onde ele diz que procurou:
reproduzir a forma incoerente, mas aparentemente lógica, do sonho. Tudo pode acontecer, tudo é possível e verossímil. Deixam de existir tempo e espaço. A partir de uma insignificante base real, o autor dá livre curso à imaginação, que multiplica os locais e as ações, numa mistura de lembranças, experiências vividas, livre fantasia, absurdos e improvisos. As personagens desdobram-se e multiplicam-se, desvanecem-se e condensam-se, dissolvem-se e refazem-se. Mas uma consciência suprema a todas domina: a do sonhador. (STRINDBERG, p.19)
Sem dúvida, o texto evoca a impressão de se estar acompanhando o desenrolar de um sonho, com saltos temporais de variadas amplitudes (poucas horas, dias, anos) e direções (futuro, passado), mudanças estonteantes na cenografia – que, inclusive, é descrita no texto de modo a parecer irromper com vida própria –, personagens que se transformam em outros, cenas paralelas que redimensionam o significado do que está ao redor. Porém, apesar da multiplicidade de imagens e do clima onírico (castelos que crescem, mulheres que são aguardadas e jamais são vistas, crianças com roupas de praia numa paisagem invernal), nada é gratuito ou se pode classificar seguramente como “absurdo”. Inclusive, o que soaria absurdo no cotidiano comum, surge e flui na seqüência de falas como algo perfeitamente coerente e corriqueiro no contexto daquela realidade alterada [4].
As situações aludem a sensações conhecidas (culpa, medo, impotência diante das circunstâncias, paixão, abandono, esperança) em circunstâncias que, apesar de incomuns, aparentam ser estranhamente familiares [5], estimulando nosso espaço mental sem usar de qualquer cerimônia. Personagens surgem com o peso de arquétipos (O Oficial, o Pai, a Mãe, o Filho, a Porteira, o Advogado, o Poeta, o Professor, os decanos de Letras, Medicina, Direito e Filosofia, ou mesmo Lina – predestinada a repetir o destino de submissão reservado à maioria das mulheres daquela época) e se materializam na ação com desconcertante humanidade.
Através de diálogos curtos, quase sempre cheios de ironia [6], todas essas criaturas agem como se não mais precisassem usar de quaisquer máscaras ou subterfúgios para ocultar seus verdadeiros sentimentos e intenções. E não precisam mesmo, afinal gozam de uma liberdade que, aparentemente, só é possível nos sonhos. Ancorado no que ele mesmo chama de “base real insignificante”, o autor demonstra que efetivamente deu “livre curso à sua imaginação” ao respeitar a lógica peculiar do espaço e do tempo desse campo de ação onírica. Assim, através de elaboração e expressão dramático-literária, Strindberg pôde oferecer um vislumbre de seu próprio e imenso tecido multidimensional de conteúdos mentais. Na busca de uma fidelidade à interpretação de sua própria matriz onírica inspiradora, esse dramaturgo toca a essência de um mesmo mundo com o qual toda a humanidade se relaciona, evocando estranha e intraduzível familiaridade naquilo que pode até parecer sem sentido no conteúdo d’ "O Sonho".
Luiz Felipe Botelho
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[1] Escritor, ensaísta e dramaturgo, Strindberg foi também jornalista e crítico social, “profundamente interessado tanto na ciência (química, medicina, ciências políticas) quanto no ocultismo e na estética. Homem de letras, novelista, poeta, pintor, considerado um dos maiores renovadores do idioma sueco, idealizador do Teatro Íntimo (Intima Theater), que funcionou de 1907 a 1910 e tornou famoso o número 20 da Rua Norra Bantoget, na própria capital” sueca. (...) “Escreveu a maior parte dos dramas intimistas aí encenados, quase sempre referidos ao casal, ao casamento como armadilha, explorando-se ao infinito as contradições e ambivalências entre o pensar, o sentir e o agir que tanto encantaram o escritor Arthur Schnitzler e o médico Sigmund Freud, para citar dois perscrutadores da psique humana, ambos estabelecidos naquela Viena fin-de-siècle que insistia em chocar o mundo com experiências de vanguarda na área cultural”. (FILHO, Gisálio Cerqueira. A Ciência Política e o Teatro Intimista de August Strindberg
[2] Transbordante de imagens e significações, a trama descreve a passagem de um ser divino pelo mundo dos humanos – Inês, filha do deus Indra – que decide experimentar a existência entre (e como um de) nós. Além de vivenciar o cotidiano de uma mulher – sobretudo a vida em família e a luta pela vida – Inês entra em contato com dezenas de personagens de todos os tipos e origens. Aprendiz testemunhal, segue observando os contextos de cada um deles, deparando-se com comportamentos viciosos e dinâmicas sociais que se evidenciam na trama como responsáveis por alimentar e manter o sofrimento terreno.
[3] O sonho faz parte de um conjunto de textos teatrais de Strindberg onde o onírico é tomado como referência importante na criação dramatúrgica. As outras peças são a trilogia O Caminho de Damasco/Para Damasco (Till Damaskus/To Damascus, 1898/1901), considerada a primeira contestação drástica do drama como forma literária e marco inicial do expressionismo, e A Sonata dos Espectros (Spöksonaten /The Spook Sonata/The Ghost Sonata, 1907).
[4] "Por que é que sou obrigado a esfalfar-me tratando dos cavalos, preparando-lhes as camas e a varrer o esterco”, pergunta o Oficial a Inês que responde “Para que sintas vontade de fugir”. O Sonho, Cena II. “Quem é esta moça”, pergunta a Mãe, apontando para Inês. O Oficial responde em voz baixa: “É a Inês”. E a Mãe diz, no mesmo tom: “Ah! É a Inês! Sabes o que andam dizendo? Que ela é a filha do deus Indra e que desceu à Terra para ver como vivem os homens”. O Sonho, Cena III. (STRINDBERG, p. diversas)
[5] De um modo geral, são cenas que costumam evocar no leitor/espectador a sensação de que, de algum modo, aquele universo não lhe é de todo estranho.
[6] "Nada é livre, tudo tem dono”, diz o Advogado. “Até mesmo o mar imenso e infinito?”, pergunta Inês. E o Advogado responde: “Tudo! Não podes navegar ou acostar seja onde for sem fazer uma declaração e sem pagar uma taxa! É muito lindo, como pode ver”. O Sonho, Cena XII. (STRINDBERG, p.155)
BIBLIOGRAFIA
- BARRETO, Luiz Felipe Botelho Paes. O jogo do ilimitado: Dissolução dos limites de tempo e espaço na dramaturgia de João Falcão. SESC - Piedade: Recife - PE. 2007
- STRINDBERG, August. O sonho. Portugal: Editorial Estampa.
sábado, 8 de agosto de 2009
Sobre Woyzeck, de Büchner
(Atenção: os próximos parágrafos contêm detalhes da peça e de seu final).
O personagem-título é fuzileiro miliciano e age como se tivesse algum distúrbio mental que o imbeciliza. É servil, comunica-se de modo um tanto confuso e parece ter alucinações envolvendo uma ameaça que está prestes a atingir a região onde mora. Objeto de chacota e exploração de homens influentes – o médico, por exemplo, paga-lhe alguns trocados para utilizá-lo como cobaia de experiência alimentar – Woyzeck mantém relação afetiva com Marie, a quem entrega o pouco dinheiro que ganha. Ambos criam um bebê e vivem miseravelmente. A descoberta de que sua companheira mantém um caso com o tamboreiro-mor da milícia desconcerta Woyzeck, que entra numa espiral obsessiva que culmina com o assassinato de Marie, a quem ele esfaqueia até a morte.
Salta aos olhos uma série de ‘liberdades’ tomadas por Büchner, impensáveis aos estetas da dramaturgia de século XIX, fiéis a um conjunto de regras atribuídas a Aristóteles. Ao contrário do herói trágico de sentimentos nobres e condição superior, temos o (anti) herói idiotizado que pertence a uma classe subalterna e caminha para seu fim trágico sem consciência da dimensão dos fatos que protagoniza. Se a narrativa segue um rumo linear (não há recuos no tempo, os fatos são mostrados em ordem cronológica), é fragmentada e sem qualquer preocupação com uma lógica evidente na exposição da trama. As cenas curtas quase sempre saltam no tempo e no espaço ao passarem de uma para outra, ignorando as chamadas unidades aristotélicas de tempo e lugar. De fato, o autor dá a impressão de cortar a narrativa como se editasse um filme de cinema (invenção que só apareceria décadas depois): mal acaba a primeira cena na cidade e Woyzeck, que até então conversava com o Capitão, já está colhendo varas em campo aberto com seu amigo Andrés. A mudança é de tal modo proposital que a didascália indica claramente que a cidade, na qual se passava a cena anterior, agora “está à distância”.
Precussor da dramaturgia moderna, Büchner vai além até mesmo do que propuseram naturalistas e realistas do início do século XX. Ao abandonar o culto ao aristotelismo, o dramaturgo alemão antecipa em Woyzeck vários recursos característicos do gênero épico, que viriam a ser utilizados cem anos depois por Bertolt Brecht, a exemplo das cenas curtas não necessariamente interligadas já mencionadas acima, das cantigas tradicionais que entremeiam algumas cenas, do protagonismo – sem heroísmo – de excluídos numa ação que confronta classes sociais e da exposição da realidade numa crueza que mais parece provocar e exigir uma atitude da platéia. No contexto em que foi criada, Woyzeck é tão unívoca e transgressora enquanto idéia que é capaz de acolher até mesmo seu não-planejado final abrupto, surpreendentemente adequado à trama, narrativa permeada por várias falas que parecem compor um fluxo subjacente de significado, aludindo tanto ao desperdício da vida numa sociedade apática e reprodutora de uma miséria absurda quanto ao poder sem mácula imanente nos ciclos da natureza e no próprio mistério da eternidade.
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(1) Apesar da genialidade de suas obras, somente sessenta anos após morrer de tifo, aos 24 anos incompletos, Georg Büchner (1813-1837) teve sua primeira peça encenada na Alemanha (Leonce e Lena, 1836). Mais quarenta anos se passaram até a primeira tradução para o inglês. A incompleta Woyzeck, considerada por muitos como a obra-prima desse dramaturgo, foi inspirada num caso real ocorrido em Leipzig em 1824, onde um homem chamado Johann Christian Woyzeck foi decapitado por assassinar a esposa. Büchner também escreveu A morte de Danton (Fonte: www.geocities.com/al6an6erg/woyzeck.html)
3) O filme Woyzeck (Alemanha, 1979) foi dirigido por Werner Herzog (Alemanha), com Klaus Kinski no papel título e a participação de Eva Mattes, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes pelo papel de Marie. Herzog realizou este filme com longos planos e apenas 27 cortes, aludindo às origens teatrais da trama.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
O século XIX e os limites do olhar
O século XIX marcou o início de um longo e radical processo de expansão dos limites do conhecimento humano. Inúmeras descobertas científicas começaram a minar a idéia de realidade como ela era até então concebida. A partir dali novas referências seriam introduzidas numa tal aceleração, que cada vez menos seria possível assimilá-las antes que fossem substituídas por outras.
Aqueles eram anos em que acadêmicos, como o matemático alemão Georg Bernard Riemann (1826-1866), eram perseguidos e desacreditados por lidarem com conceitos que desafiavam a lógica comum [1]. Os estudos de Riemann, por exemplo, iam além do que propunha a geometria euclidiana e consideravam a existência de outras dimensões espaciais além das conhecidas.
Fatos como esse ajudam a compreender o peso que também tiveram as chamadas ciências ocultas nesses anos. Sob o ataque permanente da Igreja e o ceticismo de parte da comunidade científica, o ocultismo complementava essa complexa colcha de retalhos que tanto abrangia nomes respeitados em seus respectivos meios - como o pedagogo Hippolyte Rivail / Allan Kardek (França, 1804-1869) e a ocultista Helena Blavatsky (Rússia, 1831-1891) [2] - como involuntariamente abria espaço para consequências díspares: se de um lado estimulava a curiosidade e a imaginação do público (e dos artistas), de outro não tinha como impedir que espertalhões se aproveitassem para tratar do assunto como um lucrativo negócio. Fosse como fosse, tudo servia como provocação e desafio a quem viveu aqueles anos.
Entre descobertas, embates, alumbramentos e polêmicas, foi nesse século que viriam a ser fincadas as bases de trabalhos revolucionários, como os estudos psicanalíticos de Sigmund Freud (Áustria, 1856-1939) e as teorias de Albert Einstein (Alemanha, 1879-1955) sobre a Relatividade (a Teoria da Relatividade Especial, publicada em 1905 e a Teoria Geral da Relatividade, de 1915), para citar apenas estas.
Ainda que nem todos se dessem conta, lançavam-se luzes sobre uma fronteira paradoxalmente familiar porém pouco explorada: o universo mental e suas leis peculiares das quais, mesmo hoje, pouco sabemos. Expunha-se um novo e temido mundo, que viria a ser credibilizado por Freud como instância cujo conteúdo subjetivo é decisivo na construção da realidade objetiva.
Einstein, por sua vez, proporia o espaço e o tempo como sendo uma grandeza única (o espaço-tempo) que, embora entendida como algo que está na base da estrutura do universo que chamamos de mundo real, não será mais tida como absoluta. Isso implicaria em que a própria existência, como era vivida e compreendida, estava emergindo como um conceito relativo.
A vida como um infinito de possibilidades se tornou uma idéia cada vez mais próxima e concreta, para desespero de muitos religiosos (que viam a ciência se aproximar perigosamente de seus domínios) e acadêmicos (que precisariam aprender a lidar com a incerteza e a intangibilidade).
Se a ciência desse século experimentava a efervescência de idéias cada vez mais revolucionárias, os artistas não esperavam comprovações para lançar-se adiante, com seus sonhos que seriam lampejos de um real que estaria por desabrochar.
A dramaturgia levaria adiante a lição libertária proposta pelos românticos. Ainda que bebendo das influências dos vários movimentos artístico-literários que surgiriam e feneceriam no século XIX e além dele [3], a prática dramatúrgica viria a ser cada vez mais tomada por experiências individuais, cujas visões particulares mergulhariam - e ao mesmo tempo transcenderiam - os domínios do ego cotidiano. Assim, essa arte continuaria a se constituir como um delinear de portas para acessar novos aspectos da complexidade da existência humana e da essência que a anima.
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[1] Ironicamente os estudos de Riemann, rechaçados na época em que foram apresentados, viriam a subsidiar os estudos que levaram à Teoria da Relatividade.
[2] Pedagogo e escritor, Hippolyte Léon Denizard Rivail adotou o nome de Allan Kardec para distinguir seus trabalhos em pedagogia dos estudos sobre fenômenos atribuídos à espíritos. Tais estudos o levaram a ser reconhecido como codificador da Doutrina Espírita. De familia católica, seu interesse pela comunicação com espíritos veio ao frequentar inúmeras reuniões onde médiuns falavam em nome de pessoas falecidas. Já Helena Blavatsky foi estudiosa do ocultismo e autora de várias obras sobre o tema. Ela fundou a Sociedade Teosófica, núcleo de estudos que considerava a existência simultanea de elementos físicos e espirituais na natureza das criaturas.
[3] Como o realismo, o naturalismo, o expressionismo e o surrealismo, para citar só estes.