quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O século XIX e os limites do olhar


Texto de Luiz Felipe Botelho

O século XIX marcou o início de um longo e radical processo de expansão dos limites do conhecimento humano. Inúmeras descobertas científicas começaram a minar a idéia de realidade como ela era até então concebida. A partir dali novas referências seriam introduzidas numa tal aceleração, que cada vez menos seria possível assimilá-las antes que fossem substituídas por outras.

Aqueles eram anos em que acadêmicos, como o matemático alemão Georg Bernard Riemann (1826-1866), eram perseguidos e desacreditados por lidarem com conceitos que desafiavam a lógica comum [1]. Os estudos de Riemann, por exemplo, iam além do que propunha a geometria euclidiana e consideravam a existência de outras dimensões espaciais além das conhecidas.

Fatos como esse ajudam a compreender o peso que também tiveram as chamadas ciências ocultas nesses anos. Sob o ataque permanente da Igreja e o ceticismo de parte da comunidade científica, o ocultismo complementava essa complexa colcha de retalhos que tanto abrangia nomes respeitados em seus respectivos meios - como o pedagogo Hippolyte Rivail / Allan Kardek (França, 1804-1869) e a ocultista Helena Blavatsky (Rússia, 1831-1891) [2] - como involuntariamente abria espaço
para consequências díspares: se de um lado estimulava a curiosidade e a imaginação do público (e dos artistas), de outro não tinha como impedir que espertalhões se aproveitassem para tratar do assunto como um lucrativo negócio. Fosse como fosse, tudo servia como provocação e desafio a quem viveu aqueles anos.

Entre descobertas, embates, alumbramentos e polêmicas, foi nesse século que viriam a ser fincadas as bases de trabalhos revolucionários, como os estudos psicanalíticos de Sigmund Freud (Áustria, 1856-1939) e as teorias de Albert Einstein (Alemanha, 1879-1955) sobre a Relatividade (a Teoria da Relatividade Especial, publicada em 1905 e a Teoria Geral da Relatividade, de 1915), para citar apenas estas.


Ainda que nem todos se dessem conta, lançavam-se luzes sobre uma fronteira paradoxalmente familiar porém pouco explorada: o universo mental
e suas leis peculiares das quais, mesmo hoje, pouco sabemos. Expunha-se um novo e temido mundo, que viria a ser credibilizado por Freud como instância cujo conteúdo subjetivo é decisivo na construção da realidade objetiva.

Einstein, por sua vez, proporia o espaço e o tempo como sendo uma grandeza única (o espaço-tempo) que, embora entendida como algo que está na base da estrutura do universo que chamamos de mundo real, não será mais tida como absoluta. Isso implicaria em que a própria existência, como era vivida e compreendida, estava emergindo como um conceito relativo.

A vida
como um infinito de possibilidades se tornou uma idéia cada vez mais próxima e concreta, para desespero de muitos religiosos (que viam a ciência se aproximar perigosamente de seus domínios) e acadêmicos (que precisariam aprender a lidar com a incerteza e a intangibilidade).

Se a ciência desse século experimentava a efervescência de idéias cada vez mais revolucionárias, os artistas não esperavam comprovações para lançar-se adiante, com seus sonhos que seriam lampejos de um real que estaria por desabrochar.

A dramaturgia levaria adiante a lição libertária proposta pelos românticos. Ainda que bebendo das influências dos vários movimentos artístico-literários que surgiriam e feneceriam no século XIX e além dele
[3], a prática dramatúrgica viria a ser cada vez mais tomada por experiências individuais, cujas visões particulares mergulhariam - e ao mesmo tempo transcenderiam - os domínios do ego cotidiano. Assim, essa arte continuaria a se constituir como um delinear de portas para acessar novos aspectos da complexidade da existência humana e da essência que a anima.

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[1] Ironicamente os estudos de Riemann, rechaçados na época em que foram apresentados, viriam a subsidiar os estudos que levaram à Teoria da Relatividade.
[2] Pedagogo e escritor,
Hippolyte Léon Denizard Rivail adotou o nome de Allan Kardec para distinguir seus trabalhos em pedagogia dos estudos sobre fenômenos atribuídos à espíritos. Tais estudos o levaram a ser reconhecido como codificador da Doutrina Espírita. De familia católica, seu interesse pela comunicação com espíritos veio ao frequentar inúmeras reuniões onde médiuns falavam em nome de pessoas falecidas. Já Helena Blavatsky foi estudiosa do ocultismo e autora de várias obras sobre o tema. Ela fundou a Sociedade Teosófica, núcleo de estudos que considerava a existência simultanea de elementos físicos e espirituais na natureza das criaturas.
[3] Como o realismo, o naturalismo, o expressionismo e o surrealismo, para citar só estes.

2 comentários:

  1. Foi uma conversa maravilhosa esta da quarta-feira. Essas infinitas possibilidades de tudo, as dimensões ocultas... tudo isso me fez sair da Fundaj com uma sensação esquisita, de estranhamento das coisas. Depois, descobri que ouve eclipse naquele dia...

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  2. São os domínios da criação, Luna. Dá um friozinho na barriga, né? Mas é mais de farra do que propriamente de medo, como descer de tirolesa do alto da racionalidade para dentro de um lago de sonhos.

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