sábado, 8 de agosto de 2009

Sobre Woyzeck, de Büchner

Última peça do dramaturgo alemão Georg Büchner (1), Woyzeck (1837) é exemplo interessante de texto inacabado que parece preservar o sentido de uma obra completa, sendo hoje o texto da dramaturgia alemã mais montado em todo o mundo, tendo sido adaptado também para a ópera (2) e para o cinema (3). Para ler a peça, faça o download na Biblioteca Virtual clicando aqui.

(Atenção: os próximos parágrafos contêm detalhes da peça e de seu final).

O personagem-título é fuzileiro miliciano e age como se tivesse algum distúrbio mental que o imbeciliza. É servil, comunica-se de modo um tanto confuso e parece ter alucinações envolvendo uma ameaça que está prestes a atingir a região onde mora. Objeto de chacota e exploração de homens influentes – o médico, por exemplo, paga-lhe alguns trocados para utilizá-lo como cobaia de experiência alimentar – Woyzeck mantém relação afetiva com Marie, a quem entrega o pouco dinheiro que ganha. Ambos criam um bebê e vivem miseravelmente. A descoberta de que sua companheira mantém um caso com o tamboreiro-mor da milícia desconcerta Woyzeck, que entra numa espiral obsessiva que culmina com o assassinato de Marie, a quem ele esfaqueia até a morte.


Salta aos olhos uma série de ‘liberdades’ tomadas por Büchner, impensáveis aos estetas da dramaturgia de século XIX, fiéis a um conjunto de regras atribuídas a Aristóteles. Ao contrário do herói trágico de sentimentos nobres e condição superior, temos o (anti) herói idiotizado que pertence a uma classe subalterna e caminha para seu fim trágico sem consciência da dimensão dos fatos que protagoniza. Se a narrativa segue um rumo linear (não há recuos no tempo, os fatos são mostrados em ordem cronológica), é fragmentada e sem qualquer preocupação com uma lógica evidente na exposição da trama. As cenas curtas quase sempre saltam no tempo e no espaço ao passarem de uma para outra, ignorando as chamadas unidades aristotélicas de tempo e lugar. De fato, o autor dá a impressão de cortar a narrativa como se editasse um filme de cinema (invenção que só apareceria décadas depois): mal acaba a primeira cena na cidade e Woyzeck, que até então conversava com o Capitão, já está colhendo varas em campo aberto com seu amigo Andrés. A mudança é de tal modo proposital que a didascália indica claramente que a cidade, na qual se passava a cena anterior, agora “está à distância”.

Precussor da dramaturgia moderna, Büchner vai além até mesmo do que propuseram naturalistas e realistas do início do século XX. Ao abandonar o culto ao aristotelismo, o dramaturgo alemão antecipa em Woyzeck vários recursos característicos do gênero épico, que viriam a ser utilizados cem anos depois por Bertolt Brecht, a exemplo das cenas curtas não necessariamente interligadas já mencionadas acima, das cantigas tradicionais que entremeiam algumas cenas, do protagonismo – sem heroísmo – de excluídos numa ação que confronta classes sociais e da exposição da realidade numa crueza que mais parece provocar e exigir uma atitude da platéia. No contexto em que foi criada, Woyzeck é tão unívoca e transgressora enquanto idéia que é capaz de acolher até mesmo seu não-planejado final abrupto, surpreendentemente adequado à trama, narrativa permeada por várias falas que parecem compor um fluxo subjacente de significado, aludindo tanto ao desperdício da vida numa sociedade apática e reprodutora de uma miséria absurda quanto ao poder sem mácula imanente nos ciclos da natureza e no próprio mistério da eternidade.

Luiz Felipe Botelho

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(1) Apesar da genialidade de suas obras, somente sessenta anos após morrer de tifo, aos 24 anos incompletos, Georg Büchner (1813-1837) teve sua primeira peça encenada na Alemanha (Leonce e Lena, 1836). Mais quarenta anos se passaram até a primeira tradução para o inglês. A incompleta Woyzeck, considerada por muitos como a obra-prima desse dramaturgo, foi inspirada num caso real ocorrido em Leipzig em 1824, onde um homem chamado Johann Christian Woyzeck foi decapitado por assassinar a esposa. Büchner também escreveu A morte de Danton (Fonte: www.geocities.com/al6an6erg/woyzeck.html)

(2) A ópera Wozzeck , que permaneceu com essa grafia para facilitar a pronúncia do nome do personagem título nas árias, foi concluída em 1922 e levada à público pela primeira vez em 1924) foi composta pelo músico austríaco Alban (Maria Johannes) Berg (1885-1935).

3) O filme Woyzeck (Alemanha, 1979) foi dirigido por Werner Herzog (Alemanha), com Klaus Kinski no papel título e a participação de Eva Mattes, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes pelo papel de Marie. Herzog realizou este filme com longos planos e apenas 27 cortes, aludindo às origens teatrais da trama.

3 comentários:

  1. Eu não conhecia a peça e adorei!
    A maneira como o autor construiu os personagens como se fossem marionetes, incapazes de agir por si próprios...
    A maneira como ele ridiculariza os homens e a sociedade...
    A maneira como ele dispõe da linguagem, fragmentando-a, instalando brechas, e fazendo isso progredir até o ápice do enlouquecimento e da morte...
    Gostei!
    Agora, quero ler Strindberg. Fabiana.

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  2. E pensar que ela foi escrita na primeira metade do século XIX... E que só foi montada pela primeira vez quase cinquenta anos depois... É forte! E se você gostou de Woyzeck, vai vibrar com O sonho.

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  3. Acabo de assistir. Gostei muito. Obrigado pelo texto e pelo link para a dramaturgia!

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